Senhores Atenienses, Ouçam!

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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

SAGRADO E PROFANO: UM BREVE COMENTÁRIO


O pensamento cristão no decorrer dos séculos, por influência da filosofia grega, passou a defender uma separação entre o sagrado e o profano. Os gregos tinham uma visão que as coisas materiais eram ruins e profanas, enquanto a salvação dependia de libertar o espírito do material. A elite grega era tão influenciada por esse pensamento, que o trabalho manual(material) ficava relegado aos escravos, uma subclasse, enquanto a elite se dedicava a filosofar.

Platão defendia a idéia que o mundo material é um simulacro, ou seja, uma cópia imperfeita do “mundo das idéias”. Para alcançar o “mundo da idéias”, era preciso se libertar por meio da alma, subindo e saindo do cativeiro material. Como lembra Nancy Pearcey: “O que Platão quer dizer(...) é que o mundo material é o reino do erro e ilusão. O caminho ao verdadeiro conhecimento é livra-se de todos os sentidos físicos”¹.

Agostinho foi um dos pais da igreja que assimilou o pensamento platônico. Apesar de defender que a criação material era boa, conforme Gênesis, Agostinho defendia que a criação material de Deus, era um simulacro. Há vários exemplos da dicotomia material/espiritual no pensamento agostiniano. Ele foi um dos defensores da virgindade perpétua de Maria, por associar o sexo(algo material, feio com e pelo corpo) ao pecado. Ele, também, via o celibato como superior ao casamento. A dicotomia sagrador/profano de Platão influenciou outros pais da igreja.

A divisão sagrado/secular criou um conceito distorcido da palavra corpo. No conceito Paulino, a natureza pecaminosa é descrita de várias formas, como natureza terrena, natureza adâmica, velho homem e carne. Para Paulo, a carne a ser mortificada era a natureza pecaminosa e não o corpo humano. Com o dualismo sagrado/secular, o corpo humano passou a ser visto como algo mau, sendo assim, aquilo que fosse ligado ao corpo era pecaminoso. Surge nessa época, aqueles que defendem um corpo empacotado (totalmente coberto de roupas), a abstinência de sexo(dentro do casamento), a mundanização daquilo que fosse material.

A matéria é má? Na visão bíblica a resposta é não. O primeiro capítulo de Gênesis descreve a criação material efetuada por Deus. Moisés, escritor do Pentateuco, escreve sempre a frase: “E viu Deus que era bom”, isso após uma criação material. A matéria faz parte da criação de Deus, portanto ela não é má, mas sim, sofre as consequências do pecado.

Tomás de Aquino foi outro teólogo cristão que assimilou o pensamento grego. Aquino, combatendo a teoria da verdade dupla (que dizia que duas interpretações são verdadeiras, mesmo que esses conceitos sejam excludentes), acabou assimilando outra forma de dualismo. Tomás de Aquino produziu uma estrutura dualística, dividindo o conceito de natureza e graça. Ele dizia que o homem está em um estado de natureza pura que precisa de uma adição de graça, “quer dizer, além de nossas faculdades naturais, Deus dotara os seres humanos de um dom ou faculdade sobrenatural que os capacita a ter um relacionamento com Deus”². Esse pensamento trouxe a visão que as coisas humanas são independentes das divinas, apesar de andarem juntas. O dualismo de Aquino, produziu o pensamento de viver como homem natural e homem espiritual, coexistindo em um só ser. Um homem vive com o sagrado e com o profano ao mesmo tempo.

Partindo dessa premissa de Aquino, o pensamento vigente na cristandade é que se ia à missa para um ato sagrado, enquanto trabalhar era o lado profano. Mas essas realidades eram ligadas a um só homem. Os únicos que poderiam “viver exclusivamente do sagrado”, eram os monges, pois não se envolviam com “assuntos mundanos”.

A dicotomia sagrado/secular influência o pensamento cristão na atualidade? Sim. Ainda hoje há uma dificuldade de uma visão unificada da fé cristã para todas as áreas da vida (cultura, arte, lazer, trabalho, educação, política, esporte etc.). O dualismo permeia não só o pensamento católico, mas muitos protestantes.

Os reformadores formam os primeiros a quebrarem essa visão dualística da vida. O conceito de sacerdócio versus leigos (os sagrados versus os profanos) deu lugar a doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes, conforme a revelação bíblica (1 Pe 2.9). Os reformadores passaram a defender que a criação é boa, conforme a Bíblia (Gn 1.12, 21, 25), sendo assim as várias formas de manifestações culturais eram divinas, dizia Calvino: “todas as artes procedem de Deus e devem ser consideradas criações divinas”. Na visão reformada, o corpo passou a ser visto com templo do Espírito Santo (1 Co 3.16) e não casa e instrumentos dos demônios. Com a reforma, passou a se ensinar que o trabalho episcopal não é mais digno do que o trabalho manual ou cultural, pois tudo deve ser feito para a glória de Deus (1 Co 10. 31).

A Bíblia ensina tanto no antigo testamento, como no novo testamento, uma visão unificada da vida, vivendo tudo para a “glória de Deus”. No livro de provérbios, as várias instruções em relação à comunhão com Deus, estão do lado de instruções relacionadas à família, agricultura, finanças, casamento etc. É bem relevante a observação do teólogo católico Jacques Trublet, “a nossa dicotomia sagrado/profano se aplica com dificuldades à mentalidade hebraica, não que ela misture todos os níveis do real, mas porque na abordagem bíblica tudo funciona em interação”³. No novo testamento não é diferente, o capítulo quatro de 1 Tessalonicenses está dividido em três parágrafos (1-8, 9-12 e 13-18), o primeiro parágrafo está exortando à santidade, o segundo fala do amor e do trabalho, enquanto o terceiro parágrafo expõe a doutrina da ressurreição do santos e o arrebatamento; veja que o trabalho( vv. 11-12) está inserido no meio de “assuntos espirituais”.

Apesar do trabalho de esclarecimento dos reformadores em relação à dicotomia sagrado/secular, há ainda hoje no pensamento evangélico, sobras dessa visão equivocada de mundo. Por meio desse escrito, serão apresentadas algumas distorções que contrariam a Palavra de Deus:

a) A dicotomia sagrado/profano supervaloriza a santificação do corpo em detrimento da santificação interior. O corpo é visto como algo ruim, mau e perverso, sendo assim precisa ser mortificado por um ascetismo rigoroso.

Identificar o pecado como parte do corpo é um erro. A santidade não consiste, somente, em coisas exteriores. A Bíblia ensina que a santificação parte de dentro para fora e não o contrário, pois como escreveu Paulo aos Tessalonicenses: “E o mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e todo o vosso espírito, e alma, e corpo sejam conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo”(5.23).

Um pensamento legalista recorrente aos usos e costumes é pensar que isso seja a essência da santidade, quanto os usos e costumes são conseqüências da santidade e nunca a causa. Esses usos e costumes devem basear-se no princípio da moralidade, pudor e modéstia e não recorrer a eles como garantia da salvação, isso é legalismo farisaico. 

Não é bíblico ensinar que qualquer forma de lazer é pecaminosa ou que o crente para ser santo precisa viver longe das coisas materiais. Jesus foi a uma festa de casamento, mas sabia separar o que era legítimo e impróprio, tinha Ele discernimento.

b) A dicotomia sagrado/secular valoriza uma adoração estética, voltada em manifestações vocais, corporais e rítmicas; ligada a um espaço físico.

Hoje muito se fala em louvor e adoração, porém ligada a uma estética, uma inovadora fórmula. Biblicamente falando, a adoração não está presa à música ou outras manifestações vocais e rítmicas. Adoração é um estilo de vida, é mais do que música, culto e instrumentos musicais, são uma forma de viver, em todas as áreas da vida. Enquanto se adora com instrumentos, se deixa de louvar com testemunho público no pagamento de imposto. Essa dicotomia leva a drásticas conseqüências na vida cristã.

c) A dicotomia sagrado/secular separa drasticamente a constituição imaterial do homem, ensinando uma tricotomia dividida e não um ser holístico.

A antropologia neo-pentecostal faz uma separação acentuada entre espírito e alma/corpo. Para alguns “pseudo-mestres” da confissão positiva, o homem é um espírito que tem uma alma e habita em um corpo. A tricotomia desses “pseudo-mestres” é distorcida do ensinamento bíblico, pois nessa visão, o homem não é um ser unificado em sua constituição material e imaterial e sim divido.

Os hereges veem possibilidade de um demônio possuir a o corpo de um cristão. Nessa concepção, o corpo é inferior ao espírito, semelhante o pensamento platônico. Muitos dos conceitos expostos são semelhantes aos apresentados pelos gnósticos, seita muito combatida pelos apóstolos Paulo e João e os pais da igreja. O gnosticismo se relaciona com o neoplatonismo, e têm várias características em comum, entre elas essa visão tricotômica distorcida. O dr. Paulo Romeiro observa:

O tricotomismo extremado da antropologia da Confissão Positiva, que identifica o “verdadeiro eu interior” do homem como fundamentalmente divino, residindo exclusivamente em seu espírito, num contraste radical em relação ao seu corpo e alma transmutados por poderes demoníacos, é muito mais característica da mitologia gnóstica do que o ponto de vista judaico-cristão sobre o homem. 7 (ROMEIRO,  1999, p. 130).

Esses são alguns efeitos do conceito dicotômico no pensamento cristão. É bom lembrar que essa divisão entre o sagrado/profano contraria a visão bíblica de que tudo deve ser feito para Deus, “portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para a glória de Deus”(1 Co 10.31) e “se alguém falar, fale segundo as palavras de Deus; se alguém administrar, administre segundo o poder que Deus dá, para que em tudo Deus seja glorificado por Jesus Cristo, a quem pertence à glória e o poder para todo o sempre. Amém”(1 Pe 4.11).


Referências bibliográficas:

[1]-PERCEY, Nancy. Verdade Absoluta. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2006. p. 85-90.

[2]-MIES, Françoise(org). Bíblia e ciências. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p.37.

[3]-GONÇALVES, José. Por que caem os valentes? 4 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2006, p.83.

[4]-ROMEIRO, Paulo. Evangélicos em crise. 4 ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p.130.



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