Isto nos leva a perceber, como primeira conclusão, de que não existe uma verdadeira razão para que não haja um movimento em direção à união entre o catolicismo romano e o protestantismo liberal. Quando o arcebispo de Canterbury visitou o Papa, disse: “Já não há necessidade de nos estorvarmos um ao outro. Pois, se já não estamos um contra o outro, estamos um pelo outro, e assim podemos ser gloriosamente livres para estar juntos por Jesus Cristo e pela verdadeira unidade de Sua Igreja. Eu digo expressamente «unidade» e não «união», porque a união ou re-união se baseia numa reconciliação de jurisdições e autoridades. Porém, a unidade é só de espírito, e nesse espírito...podem entrar nas igrejas facilmente, e inclusive já estão entrando na atualidade“.
Isto é simplesmente um exemplo do que temos estado dizendo. O catolicismo romano e o novo protestantismo liberal descansam sobre a mesma base, e não existe nenhuma razão em absoluto, exceto com respeito a detalhes, para que não se unam. Qualquer conceito de verdade absoluta foi expulso em ambos campos.
Os escritos de um homem como o jesuíta norte-americano John Courtney Murray devem ser entendidos nessa estrutura. Ele e seus colegas estão instando para que os EE.UU., e também os países do Norte da Europa de tradição reformada, comecem a se desenvolverem sobre a base do conceito católico-romano de “lei natural”. Os católico-romanos instam nisto porque afirmam, com bastante razão, que os EE.UU. (como toda a cultura norte-européia) não têm ainda uma base, ou consenso, sobre o que fazer nos domínios da moral social, do direito, do governo, etc. Nisto tem razão quem pensa como Murray; porém o motivo pelo qual os EE.UU. e demais países mencionados não têm ainda uma base ou consenso para atuar, é que, tendo renunciado ao que a Reforma ensinou, tornaram-se abruptamente humanistas, e não têm absolutamente ao que se referir, ou sobre o que fundamentar suas ações.
Porém, o conceito católico-romano de lei natural é igualmente humanista e sem um absoluto em relação ao qual atuar. Temos visto que o humanismo entrou no sistema católico-romano a partir de Constantino, e especialmente que o catolicismo romano liberal moderno é devastadoramente humanista. O mesmo J.C. Murray reconhece tudo isso quando diz que a noção de lei natural é pré-cristã, anterior até mesmo aos antigos gregos, e que foi Tomás de Aquino que modelou e poliu este conceito. Isto está especificamente relacionado com as pinturas de Rafael e Miguel Ângelo no Vaticano. Faz parte do intento católico-romano para alcançar a síntese entre o pensamento humanista e o bíblico; e no âmbito do governo, o direito e a moral social, deve finalmente dar como resultado sempre conclusões humanistas e, portanto, relativas. Assim, por exemplo, a revista “Time”, de 12 de dezembro de 1960, tratando sobre o conceito de lei natural que sustenta John C. Murray, disse: “O critério de bom e mal deve ser achado na natureza do homem; o homem é — de maneira natural — um ser social; e por isso, o bem da sociedade é o do homem. O robô, por exemplo, é mal porque subverte a base da vida social, já que faz alguma mal, no terreno privado, a outro. Quando há conflito entre a satisfação das necessidades naturais, o racional (e por isso, legal) é subordinar a mais baixa à mais alta. Assim, a auto-conversação é algo bom; porém, a oposição arriscando a própria vida quando a exige o bem da sociedade, é algo mal”.
Do ponto de vista bíblico, o pecado é tal porque é contra Deus, não porque seja contra a sociedade. Quando prejudicamos a um ou vários homens é pecado, não porque tenhamos lhes prejudicados, mas porque lhes ocasionar danos contradiz a existência, o caráter e a lei de Deus. Assim, pois, o sistema bíblico é não-humanista , e absoluto. Porém, o sistema católico-romano é humanista e relativo, primeiro em sua teologia — inclusive em sua visão de Deus —, e logo em sua aplicação prática da lei natural. O conceito católico-romano de lei natural é parte da “sistemática síntese” de que fala Argan quando trata da arte de Rafael.
Na teologia católica-romana achamos uma linha ininterrupta entre o homem tal como foi criado, o homem pecador, e o homem redimido. No pensamento católico-romano a queda do homem não foi realmente total; e a salvação consiste unicamente na adição de uma justiça infundida no indivíduo. Esta linha ininterrupta é a base de seu conceito de lei natural. O ensinamento bíblico é radicalmente diferente: existe um rompimento total na queda de homem, e outra vez o mesmo na justificação. Por causa de tal queda, o homem permaneceu verdadeiramente morto. Na justificação, este passa do estado de verdadeira morte para o de vida real. Segundo a Sagrada Escritura, o homem, depois de sua queda, ainda é verdadeiramente “imagem” de Deus, no sentido de que permanece como criatura moral e racional. Ser uma criatura moral e racional depois da queda quer dizer, segundo a Bíblia, três coisas:
I. — O homem não redimido, todavia, pode desejar significância porque se acha ainda no universo para o qual foi criado; ela ainda é moral e racional. O pintor não redimido ainda pode pintar, o que ama ainda pode amar, etc.
II. — Como diz Romanos 1:19-20, o fato de que o homem permanece como um ser moral e racional o condena, porque dentro de si, em sua consciência, e na criação que o rodeia, tem testemunhas que lhe dizem que vivemos num universo moral-pessoal e que há um Criador. O fato de que o homem não redimido tenha uma consciência que o condena, está relacionado com o de que continua sendo um ser moral. O fato de que deveria ser capaz de pensar e saber, por causa da criação que o rodeia, que há um Deus, está relacionado com o de que continua sendo um ser racional. Que tenha ainda uma consciência, que continue amando, que continue anelando e buscando a beleza, o condena, porque estas coisas lhe indicam e deveriam levar-lhe numa direção exatamente oposta à que constitui a conclusão lógica de toda crença não cristã. A conclusão lógica de todas elas é que o universo é impessoal e amoral.
III. — Que o homem seja ainda um ser moral e racional e, portanto, não uma máquina, estabelece uma situação em que pode ouvir o Evangelho, e começar a refletir.
Porém na queda, o homem morreu. A força do existencialismo secular consiste em que reconhece e afirma que o homem está morto. Os existencialistas estão de acordo com a Bíblia neste ponto básico. Contudo, esta nos diz o porque o homem se acha nesta condição, e nos dá o remédio para a mesma. O homem foi criado com o propósito de que amasse a Deus com todo o seu coração, com toda sua alma e com toda sua mente, e havendo-se rebelado, é culpado, e está morto e sem propósito. Depois da queda histórica no Éden, a culpabilidade do homem lhe separa totalmente de Deus, e todas as relações secundárias estão pervertidas — as relações do homem consigo mesmo, com os demais, e com a criação —. A noção bíblica é absolutamente diferente da opinião de que existe uma linha ininterrupta, através da queda, desde a criação até a salvação. O homem, em sua rebelião contra Deus, destruiu o propósito primário para o qual foi criado e, portanto, todas as coisas estão pervertidas. De acordo com a noção bíblica, o homem se torna, na salvação, sobre a base da obra consumada de Cristo, uma nova criatura nEle, e, ainda que não de modo perfeito nesta vida, porém todavia real, todas as relações secundárias ocupam assim seu lugar devido. Em outras palavras: segundo a mente da Escritura, um humanismo não-regenerado não chega a ser humano e conduzirá ao infra-humano em todos os aspectos da vida, incluindo um consenso para a moral, o direito ou o ponto de vista social. Assim, pois, edificar sobre o conceito católico-romano de lei natural, ou sobre qualquer outro conceito humanista não-regenerado, é construir sobre o que conduzirá a algo que está por baixo da verdadeira humanidade, e que reduz progressivamente o homem à condição de máquina ou animal.
Ou, para dizer de outro modo: sendo a Igreja Católica Romana basicamente humanista, deve tratar sempre com o relativo, isto é, é o posto ao guardião do Absoluto, seja no entendimento, seja na moral. Na noção bíblica, todos os elementos humanistas estão eliminados. Na do catolicismo romano, todos os elementos humanistas básicos estão presentes.
O homem vive hoje num vazio total, busca desesperadamente uma base, e o catolicismo romanos lhe está recomendando que aceita como tal seu conceito de lei natural. Este possui um atrativo especial para os intelectuais, porém quando é examinado, se vê que não é uma base absoluta de maneira alguma, e que na realidade está relacionado com todas as demais formas de humanismo que nos assediam. Existem o humanismo protestante liberal, o comum norte-americano, e o mais recente, o socialismo, elaborado pelo polaco Adam Schaff. Este último é a nova variedade comunista de humanismo. O humanismo católico-romano é só uma parte deste quadro, e não provê solução alguma — todas estas vozes juntas se acham no âmbito de um retorno do mundo humanista gentio ao que existia antes de Jesus Cristo, porém tanto mais grave visto que seus componentes são universais. Existe pouca possibilidade de revolução, e não lugar para onde ir.
A segunda conclusão
A segunda conclusão é, por conseguinte, que o catolicismo romano não difere basicamente, em relação ao consenso de lei natural que está oferecendo ao homem em seu dilema, das outras formas humanistas — como sua teologia, tão pouco difere no básico das demais concepções humanistas, sendo a base de tudo isso o fato de que o catolicismo romano adora a um Deus imperfeito — Aceitar o conceito católico-romano de lei natural é viver sem base absoluta, e isso pode acarretar tão somente como resultado que a arbitrária voz da igreja venha a ser a norma, como ocorreu antes da Reforma. Transladar-se do vazio do pensamento geral de nosso século ao pensamento católico-romano, com relação ao governo, o direito, a sociedade, etc., é, no final da contas, passar só do vazio para outro vazio, sendo a norma a arbitrária e totalitária voz da igreja.
A Igreja primitiva e a Reforma, como temos visto, descansavam sobre duas colunas não humanistas, e na Reforma — quando um número suficiente de homens criam nestas coisas —, elas proviam uma base absoluta para a sociedade, o governo, o direito, etc. Porém agora que o mundo ocidental pós-cristianismo não crê ainda nestas coisas, não existe uma base, e o caminho que se segue conduz ao caos, ou ao totalitarismo em qualquer de suas manifestações. Isto é, segue-se esse caminho, a menos que Jesus Cristo volte, ou que de novo haja um número suficiente de homens que creiam e atuem nas e sobre as duas colunas não-humanistas tantas vezes mencionadas, e detenham essa marcha.
A terceira conclusão
A terceira conclusão é que os verdadeiros evangélicos devem permanecer sobre a base das duas colunas não-humanistas sem vacilar, ainda que isso signifique permanecer sozinhos. De outro modo, não constituiremos uma ajuda real na salvação de almas, e não seremos úteis na escuridão moral do século XX, quando o homem se torna progressivamente menos humano, tanto na vida privada como na pública, em ambos lados da Tela de Ferro. O cristianismo tem algo para dizer no século XX no que diz respeito ao direito, ao governo, à vida social, às artes, etc.; porém, não pode dizê-lo se compromete as duas colunas não-humanistas. Tudo isso significa permanecer tão claramente apartado do chamado católico-romano para com a lei natural, ou do chamado das conclusões sociológicas neo-ortodoxas nas pessoas de Brunner, Niebuhr, etc., como do humanismo popular norte-americano. Isto não pode se fazer na carne, senão que deve ser feito no poder do Espírito Santo, tomando acrescentada força no Senhor, conforme nosso complexo religioso-cultural se torna cada vez menos cristão. Em breves palavras, conforme vem a ser cada vez mais como o que circundava à Igreja primitiva. Porém, qualquer coisa que seja menos que o indicado, será finalmente a negação de nossa herança das duas colunas exclusivas não-humanistas, e nos fará ineficazes para ajudar tanto às pessoas individualmente, como à sociedade.